18 de agosto de 2022 | Leitura: 14min
Recentemente três séries de televisão foram lançadas a respeito de CEOs/fundadores “revolucionários” de startups. Empreendedores que buscavam mudar o mundo, mas que terminaram mal. Hoje servem de aviso àqueles que miram alto e arriscam muito em cima de ideias que deveriam ser mais bem avaliadas. Quando elas finalmente são observadas em detalhes, apresentam problemas gigantescos para os investidores, empregados, executivos e clientes. Em suma: não são unicórnios, e a resultante é a destruição de fortunas, reputações e carreiras.
O que parecia ser uma ideia brilhante é uma miragem, o que foi recebido como uma estratégia genial é ousadia sem alicerce e — o que é pior em um dos casos — o que parecia ser uma revolução é apenas uma mirabolante fraude.
Então, sem maiores delongas (e sem pretensão de ser crítico de televisão) vamos avaliar os casos da WeWork, da Uber e da Theranos. Vamos fazê-lo por meio das recentes séries de TV que contam suas histórias. O objetivo é avaliar tanto as ideias e estratégias como os resultados — spoiler: todos bem aquém das expectativas — desses empreendimentos.
Ruy Flávio de Oliveira – Sócio da 3GEN
Miragem 1: wecrashed
O começo da wework
A série “wecrashed”, do canal de streaming Apple TV+, conta a história de Adam Neumann, o israelense naturalizado americano que “sonha grande”. Depois de tentar a vida como empreendedor do setor de vestuário (lançando um macacão para crianças que engatinham, com proteção nos joelhos) e de calçados (lançando um sapato feminino de salto com o salto retrátil), criou a empresa wework, e redefiniu o conceito de co-working no mercado.
Neumann, (na série, o ator Jared Leto, é apresentado como um ambicioso jovem que quer a qualquer custo ficar bilionário. Depois de falhar em suas tentativas iniciais, chama a tenção de outro jovem em busca de oportunidade, Miguel McKelvey. Juntos passam a alugar andares inteiros, dividi-los em salas e posições de trabalho, e alugar o espaço para empresas que não querem investir em escritórios.
A wework cresce
O plano parece revolucionário, e atrai investidores pesados. Os custos são altos — aluguéis em Nova York e em outras cidades grandes não são nada baratos —, mas isso não espanta os investidores. Neumann consegue convencê-los de que quando dominar o mercado, os lucros virão. O esforço atrai a atenção de Masayoshi Son, fundador e CEO do Softbank, que encoraja Neumann a ser ainda mais “louco” do que ele se mostrava até aquele momento.
Por dentro, a empresa wework é um lugar que mais parece ter saído de um pesadelo de cocaína da década de 70. Péssimos salários, sexo no escritório, festas regadas a bebida e outras substâncias, enquanto Neuman e sua esposa Rebekah se fazem brilhar sob os holofotes. Um detalhe interessante: Rebekah é prima de Gwyneth Paltrow. Na série quem interpreta o papel é a atriz Anne Hathaway.
Rebekah é um caso à parte: vegana, mística, ligada à ioga e às “energias naturais”, convence Adam a expandir sua consciência e visualizar o sucesso. Ao mesmo tempo, imprime sua veia mística na empresa, derivando os negócios para uma escola holística de pretensões gigantescas.
A queda de Neumann
O plano de Neumann veio abaixo quando ele planejou o IPO (oferta inicial de ações no mercado) de nada menos que 47 bilhões de dólares de sua empresa. Nada errado até aí, mas contrariando o bom-senso, escreveu um documento de IPO que mais parece um manifesto New Age (e tome namastê).
O golpe de misericórdia foi dado pelo analista, escritor e professor da Universidade de Nova York Scott Galloway. Ele percebeu que pesados contratos de aluguel de 10 anos não são compatíveis com aluguéis “no varejo”, sujeitos a todo tipo de intempéries e sazonalidades. O artigo de Galloway é icônico, e foi um grito de “o rei está nu”, para dizer o mínimo. O resultado foi a interrupção do processo de IPO e a remoção do casal Neumann da gestão da empresa.
O que a série não mostra é que hoje a wework é avaliada em 3,9 bilhões de dólares, menos de um décimo da avaliação fantasiosa de 2019. Ah, e Adam Neuman saiu com um “pacote” de desligamento de 1,7 bilhão de dólares. Nada mal para quem chegou nos EUA com menos de 500 dólares no bolso.
Lições da wework
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Fundadores não são deuses
“Se você disser para um cara de trinta anos que ele é Jesus Cristo, ele provavelmente vai acreditar em você.” A frase é de Scott Galloway, e aponta para o erro crasso que é empoderar um empreendedor que supostamente tem uma visão genial. Neumann é ambicioso, ousado e mega carismático. Mas gênio? Não. Quem caiu em sua balela não fez a lição de casa básica de buscar saber mais sobre ele. Em resumo, due diligence não é opcional, e é obrigação de quem é convidado a pagar a conta;
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Lugar de tirar o pé do chão é na balada
Se uma empresa é mais conhecida por suas festas e por ações mirabolantes no mercado sem apresentar resultados, alguma coisa está errada embaixo do capô. Ou seja, cuidado na hora de aplaudir os “efeitos especiais”: eles podem encobrir uma enorme quantidade de conversa mole que vai te fazer perder tempo e dinheiro;
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Objetividade acima de tudo
O comediante Groucho Marx apresentou, ainda na década de 1940 um dos mais importantes conceitos de negócios de todos os tempos: “Não morro de amores pela realidade, mas ainda é o único lugar onde se consegue uma refeição decente.” Nenhum dos investidores se deu o trabalho de dissecar o plano de negócios de Neumann antes de lhe entregar um caminhão de dinheiro.
Quando isso foi feito, ficou mais que óbvio que o negócio demandaria uma injeção multibilionária de recursos para ter alguma chance de sucesso. Aliás, os analistas que fizeram essa avaliação a priori não acreditavam nesse sucesso. E no fim, todos se entregaram à suposta visão de Neumann. Deixaram de lado seu pensamento crítico e pularam de cabeça na fantasia. Em resumo, mais uma vez faltou objetividade, e o resultado foi que bilhões e bilhões de dólares foram pelo ralo em função disso.
Miragem 2: Super Pumped
O começo da Uber
Essa série do canal Showtime está disponível no Brasil pelo serviço de Streaming Paramount+, e conta a história da Uber e de seu controverso CEO Travis Kalanick, interpretado pelo ator Joseph Gordon-Levitt.
Na série vemos a ascensão de Kalanick, primeiro com um serviço “turbinado” de taxi – a empresa se chamava “Ubercab” por conta disso, aliás. Nessa pegada inicial, a Ubecab sai brigando com o lobby dos taxistas em San Francisco, buscando seu lugar ao sol. Kalanick é beligerante, esquentado, se acha o melhor dos CEOs. Pior: cria fantasias para si mesmo sobre os principais passos que deu no mundo dos negócios Cria contos da carochinha em sua cabeça que nada têm a ver com a realidade.
Desde o começo, Kalanick mostra que sua ambição tem dois fortes e perigosos aliados. O primeiro é uma ousadia descomunal, que o leva a “peitar” os opositores e a blefar mais do que o juízo recomenda. O segundo é um enorme desprezo pela ética. A ousadia o leva a enfrentar o poderoso lobby dos taxistas em San Francisco, ganhando a queda de braço. A vitória veio quando decidiu que o serviço da Uber não é de taxi, mas sim de “compartilhamento de transporte”.
O desprezo pela ética o leva a criar mecanismos que permitem que o software identifique fiscais na cidade de Portland. Esses fiscais descobriram que era fácil multar os motoristas, bastando solicitar uma corrida. O mecanismo proposto por Kalanick os deixa “na mão”, sem que nenhum motorista enxergue que estão chamando, (Se você acha que isso não é um problema, raciocine um pouco e reveja seus conceitos).
A Uber cresce
Sabe aquele velho clichê dos desenhos animados que mostra um diabinho e um anjinho nos ombros do personagem principal? Pois é, Kalanick teve um par desses. O anjinho é o investidor Bill Gurley (o ator Kyle Chandler). A diabinha é empresária Arianna Huffington (a atriz Uma Thurman). Gurley é o principal investidor da Uber, e atua como mentor de Kalanick buscando direcionar o jovem empreendedor a fazer a plataforma explodir. Seu objetivo é atrair investimentos bilionários, o que vai fazer a Uber dominar o mercado de compartilhamento de transporte. Gurley tenta orientar Kalanick a ser ético e a atuar de forma comedida, sem ações bombásticas e sem atrair a ira do mercado. Já Huffington orienta Kalanick a fazer o que quiser. Na visão dela o jovem e arrogante empreendedor é superior aos que o cercam e “merece” seu sucesso.
Kalanick atua como o típico “macho alfa”
Impondo sua vontade sem pensar em potenciais consequências negativas. Aliás, ele fomenta esse comportamento em toda a empresa, sem dó. Não demora muito para que esse direcionamento crie um ambiente tóxico dentro da Uber, como só iria acontecer. Motoristas ganham cada vez menos, assédio sexual e misoginia começam a rolar soltos, e a arrogância descomunal de Kalanick incomoda cada vez mais o mercado.
A arrogância de Kalanick é tamanha que mesmo quando as ações antiéticas da empresa são descobertas pela Apple ele tenta enfrentar os executivos da empresa. Detalhe: o iPhone era responsável por algo em torno de 80% do faturamento da Uber naquele momento. Só depois de muito apanhar é que ele se entrega à realidade. Afinal, a Apple tem o poder de destruir a Uber, simplesmente se negando a manter o aplicativo na plataforma. Mesmo assim, mesmo sob ameaça de ver sua empresa destruída, Kalanick ainda tem dificuldade de se mostrar arrependido ou exibir alguma humildade, inventando uma história sobre a ameaça da China. Tim Cook, CEO da Apple não acredita na balela, mas decide dar-lhe uma chance, desde que ele não descumpra as regras da App Store.
A queda de Kalanick
O golpe de misericórdia vem de um motorista, que depois de guardar uma gravação de vídeo por meses a fio, decide por publicá-la. Na gravação feita a partir do painel de seu carro, o motorista percebe que o passageiro é Kalanick e o confronta. Ele aponta as perdas que os motoristas vêm acumulando nos últimos anos. Kalanick — macho alfa arrogante, como sempre — “peita” o motorista, sem perceber o erro que comete. O resultado é o início da campanha #DELETEUBER. Impulsionada pelo vídeo e pelas delações de falta de ética e assédio sexual, a campanha sugere que os usuários deletem o aplicativo de seus celulares. Afinal, há outros serviços de transporte menos problemáticos, com executivos menos arrogantes e ambientes menos tóxicos.
O fim da história é o mesmo de Adam Neumann: depois de muito aprontar, Kalanick é removido de seu posto de CEO da Uber. Ele só não termina mal pessoalmente porque vende 90% de suas ações da empresa, ficando com um lucro de 2,5 bilhões de dólares.
Um futuro mais que duvidoso
Um detalhe: a série termina sem dizer nada sobre o futuro da Uber. O mercado inteiro sabe que esse futuro não é cor-de-rosa, é bom frisar. O modelo criado por Kalanick e basicamente em operação até hoje não é sustentável. Tanto que o próprio Kalanick tentou pivotar a empresa, removendo a dependência em motoristas para uma empresa de veículos autônomos. Aliás, ele tentou dar uma rasteira no Google, pioneiro dessa tecnologia, mas levou ele mesmo um tombo.
Dependendo de motoristas, a Uber não é sustentável, e o que vemos hoje em dia é o resultado dessa teimosia. As corridas estão ficando mais caras, já se aproximando dos taxis, com aumento da escassez de motoristas. Isso pode te deixar na mão por um bom tempo até conseguir o transporte. Para dar lucro a seus acionistas. A Uber precisa aumentar seus preços e pagar menos para os motoristas, o que simplesmente não é possível como modelo de negócios. O autor Cory Doctorow vai um pouco além: chama a Uber de um golpe, e o mercado ainda não percebeu ser o pato.
Lições da Uber
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Arrogância até pode ajudar um empreendedor (veja os casos de Steve Jobs, Michael Dell, Larry Ellison e tantos outros).
Mas apenas se por trás dela vier um produto ou serviço revolucionário, é bom lembrar. Jobs, por exemplo, era irritante em sua arrogância, mas a direcionava sempre para a excelência dos produtos da Apple. Kalanick usava sua arrogância para esconder antiteticamente os problemas dos serviços da Uber. Uma hora alguém (ou todo mundo) vai perceber a jogada, e portanto o tombo é certo;
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Falta de ética é um péssimo alicerce para uma empresa.
Não podemos ser ingênuos: falta de ética muitas vezes é o que faz com que uma empresa cresça, obviamente. Contudo, não pode ser o pilar da empresa, senão ela não tem sustentação. Ou seja, ética e canja de galinha são sempre bem-vindos.
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Cuidado com a cultura da empresa.
A cultura da empresa é um elemento muitas vezes relegado ao segundo plano — ou pior: cultivado ostensivamente da forma errada. O resultado pode ser catastrófico. Empresas com ambiente e cultura tóxicos podem até ser bem-sucedidos por um tempo, claro. O grupo Garantia, por exemplo, teve sucesso cultivando um ambiente em que a competitividade beirava a barbárie nas décadas de 80 e 90. Contudo, no mais das vezes o que se gera é publicidade negativa e processos judiciais, além de uma enorme dose de desconfiança do mercado. Em resumo: cuide da cultura, senão ela engole a empresa;
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Não se cospe no prato em que se come.
Seus fornecedores, seus parceiros, seus investidores, seus acionistas, seus clientes, seus prestadores de serviço: sua empresa depende de todos eles. Nenhum modelo de negócio que valha o papel em que está impresso visa enganar ou mesmo negligenciar nenhum deles. Afinal, o sucesso da empresa não é possível sem o apoio deles.
Miragem 3: The Dropout
O começo da Theranos
Esta é uma série do canal de streaming Star+, Hulu que apesar de tratar da ascensão e queda da CEO de uma startup “unicórnio”, difere das anteriores em um ponto importante. Em “The Dropout” o tema central não é a empreendedora Elizabeth Holmes e o caminho que seguiu com sua empresa até o tombo final. O tem central é algo muito mais tenebroso: fraude.
A história de Elizabeth Holmes (interpretada por Amanda Seyfried) começa a ser contada em sua infância. Nós a vemos bem inepta nos esportes, mas querendo “criar algo novo” já na época. Boa estudante, consegue ingressar na prestigiosa universidade de Stanford. Ainda em seu primeiro ano na instituição, consegue participar de um grupo de pesquisa ao apontar um erro de um dos pesquisadores. O tema — marretado por conta de uma música do início dos anos 2000 — é “pressa”. A jovem tem pressa, e essa temática será fundamental para entendermos o buraco em que a futura empreendedora se meteu.
Contra os avisos da professora Phyllis Gardner — que recomenda o oposto da pressa, uma vez que não há como apressar a ciência — ela se desliga de Stanford. Um parêntese: o termo “dropout” se refere a quem desiste da faculdade. Ela funda a Theranos, em 2003, com a proposta de criar um dispositivo de testes de saúde que funciona com apenas uma gota de sangue.
Se você conhece alguma coisa sobre testes de laboratório, vai ter a mesma reação que algumas pessoas tiveram já naquele momento inicial. É fisicamente impossível obter muitas informações de uma pequena quantidade de sangue. Mas essa era a proposta de Holmes, por mais fantasiosa que fosse.
A Theranos “cresce”
O que vemos, a partir do começo da Theranos, é a velha dança dos “startapeiros”: uma ideia mirabolante e uma busca incessante por capital para fazer essa ideia decolar. Durante a busca, Holmes conhece até o lendário Larry Ellison, o bilionário fundador da Oracle. Ele recomenda que ela seja agressiva, uma líder, que corra atrás. Se ela conseguir demonstrar seu protótipo de teste sanguíneo para a Novartis, ele entrará no negócio com ela.
Até aqui temos uma história de empreendedorismo. Infelizmente, estamos apenas na metade do segundo episódio (de oito), e antes do final, essa se transformará em uma história de fraude. De uma ideia promissora, de uma empresa inovadora, de uma empreendedora audaciosa, o que veremos a partir daí é um golpe que se aprofunda. Antes de terminar, esse processo vai dissolver 700 milhões de dólares e prejudicar milhares de pacientes ao longo do caminho.
Cavando a própria cova
Holmes e seu namorado Sunny Balwani (interpretado por Naveen Andrews) mentem sobre o funcionamento do protótipo — que simplesmente não funciona. Passam a encobrir suas mentiras com mais mentiras, quando a cada tentativa o que colhem são apenas mais fracassos. Acordos de confidencialidade passam a ser a norma na Theranos, e a empresa impõe rígidas regras de compartimentalização. Tudo para impedir que o mundo lá fora descubra que o produto não funciona. O dinheiro continua fluindo, e a Walgreens, gigante norte-americana das farmácias, investe pesado. Mas o segredo em torno do produto começa a atrair desconfiança atrás de desconfiança.
Uma pergunta interessante é sobre o momento em que Elizabeth Holmes caiu na real sobre a impossibilidade de ter sucesso. Há os que argumentam que ela realmente acreditava em sua ideia, enganando a si própria por anos — de 2003 até 2017, quando foi indiciada judicialmente. Já outros defendem que ela caiu na real bem antes, mas sabia que admitir seu erro a levaria a um processo judicial — que no fim foi o que aconteceu. Por isso passou a mentir compulsivamente para tentar ganhar tempo, esperando por um milagre.
A queda de Holmes
O golpe de misericórdia veio com o artigo de John Carreyrou (interpretado por Ebon Moss-Bachrach) no Wall Street Journal. O artigo expôs as falcatruas da Theranos e de Elizabeth Holmes, não deixando dúvida sobre sua responsabilidade.
A empresária e seu (ex-)namorado foram condenados judicialmente, e ela aguarda sua sentença que pode ser de até 20 anos de prisão.
Lição da Theranos
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Fraude: não.
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