13 de maio de 2021 | Leitura: 8min
A ideia não é nova, e vem sendo explorada pela ficção científica há muito tempo: o “Apocalipse Robô”, em que as máquinas inteligentes se revoltam, provocam a extinção da espécie humana, e dominam o mundo. Arnold Schwarzenegger viveu o androide assassino criado pela empresa fictícia Skynet, em “O Exterminador do Futuro”, apontando para um futuro nada harmônico entre o ser humano e as máquinas.
Estamos bem distantes dessa distopia, é verdade, mas ainda assim já somos bastante afetados pela automação e, em especial, pela Inteligência Artificial.
Em sua obra, o jornalista Kevin Roose — que escreve para o New York Times e é especializado em assuntos de tecnologia — mostra que enfrentamos a questão da automação desde a primeira Revolução Industrial, no século XVIII. Roose mostra, corretamente, que não é nada nova a ideia de substituir trabalho braçal por máquinas que realizam o mesmo trabalho automaticamente, sem precisar de salário, dias de folga, férias, décimo-terceiro, e por aí vai. Desde que James Watt criou a primeira bomba d’água com base em sua máquina a vapor e a utilizou para remover a água que se acumulava em minas de carvão na Grã-Bretanha, duas tendências se iniciaram: os resultados melhoraram em função da eficiência das máquinas; e gente perdeu o emprego.
O livro “Futureproof – 9 Rules for Humans in the Age of Automation” (“À Prova de Futuro – 9 Regras para Humanos na Era da Automação”, em tradução livre), lançado agora no começo de 2021, traz um histórico da automação, lembrando que não é só agora, com a presença da Inteligência Artificial que corremos o risco de ficarmos obsoletos em nossas tarefas profissionais, mas desde muito tempo que corremos esse risco.
Em essência, todos os avanços tecnológicos, de alguma forma, afetaram o ser humano, e em especial o desempenho das profissões. A diferença é que com o advento dos computadores, do aprendizado de máquina, e da cibernética — a união entre as máquinas mecânicas e os computadores eletrônicos —, quem está sendo ameaçado não é só o trabalhador braçal. Não, essa era já ficou no passado, quando cada vez mais fábricas passaram a automatizar seus processos. Só que esses empregos postos em risco eram, no mais das vezes, empregos em que o que mais se demandava do trabalhador era esforço mecânico, braçal, que pode ser rapidamente aprendido em algumas sessões de treinamento, e que até melhora com a experiência, mas não cresce em produtividade além da capacidade física de quem o realiza. E mais: demanda salário, está sujeito às intempéries da saúde física e mental do trabalhador, e por aí vai.
Mais recentemente, com a inserção do computador no escritório, mais tarefas são realizadas mais fácil e eficientemente — e por menos pessoas — do que antes de seu surgimento. Pense em um escritório de contabilidade da década de 1940: grandes salões de calculistas, cada um com sua máquina mecânica — só nas empresas grandes e mais abastadas, aliás — fazendo contas e verificando resultados. Entra em cena, em 1979, o VisiCalc, a primeira planilha eletrônica, disponível para o saudoso computador Apple ][ (assim mesmo, o “2” eram dois colchetes invertidos). Em pouco tempo já era possível realizar o trabalho de uma semana de um calculista em poucos minutos. Sem erros, e com a possibilidade de que a mesma planilha — que demorava algumas horas ou alguns dias para ficar pronta — pudesse ser usada com apenas algumas pequenas alterações para atender outro cliente. Uma planilha de cálculo em um escritório torna obsoleto o trabalho de vários calculistas, dependendo da complexidade do trabalho: a mesma planilha pode realizar o trabalho de 2, 3, 4 ou mais calculistas, com facilidade, demandando apenas um operador capacitado.
Aí está o problema: automação. Não é porque a Inteligência Artificial entra em cena, e hoje temos robôs mais eficientes e especializados que esse quadro mudou.
Mas então a situação é a mesma de 20, 40, 100 ou 200 anos atrás? Não, Roose mostra que não é bem assim.
O que mudou é que hoje cada vez mais a automação toma espaço em tarefas mais especializadas, em que o raciocínio, a capacidade de análise mais generalizada e mesmo a criatividade são essenciais. Os exemplos são vários: o cargo de supervisão de atendentes de call center hoje pode ser desempenhado pelo software COGITO, que avalia entonação de voz, entusiasmo, pausas e várias outras características do atendimento, inclusive alertando quando o atendente está falando demais, sem deixar o cliente falar; programas especializados em diagnósticos médicos com base a análise detalhada de exames e histórico dos pacientes já são mais precisos e eficazes que painéis inteiros de especialistas; sistemas capazes de correlacionar dados e fatos e deles extrair um texto narrativo coerente já escrevem artigos de notícia que, mesmo sendo um pouco “sem sal”, são precisos e dão trabalho mínimo aos editores; redes neurais capazes de produzir música coerente, que se não é páreo para Beethoven u para o Led Zeppelin, já serve de fundo para vídeos e podcasts sem prejuízo para o conteúdo e muito mais barato para os produtores. Não, nenhum emprego está livre da ameaça da automação com base na habilidade ou na experiência do profissional.
Mas então, o que resolve? É aí que entramos na segunda parte do livro, em que o autor delineia 9 regras para evitar que nos tornemos obsoletos diante da ascensão das máquinas:
- Seja surpreendente, social e escasso
– Nossa humanidade nos dá a capacidade de surpreender quem nos cerca, por meio de nossa flexibilidade, de nossa adaptabilidade, de nossa capacidade de mudar. Isso, combinado com nossa capacidade de socialização e do fato de que somos “um só”, joga a nosso favor. O médico mega-competente pode ser substituído, mas o médico que toma tempo de sua agenda para se sentar ao lado do paciente e conversar, não.
- Não se deixe ao sabor das máquinas
– Passamos de ter dispositivos como nossos assessores para sermos assessores de nossos dispositivos. Quando reagimos imediatamente às notificações do Facebook ou do WhatsApp, quando passamos horas dando scroll na timeline e reagindo por meio de comentários, quando passamos cada vez mais tempo na telinha do celular, estamos ajudando os sistemas a mapearem nosso comportamento, e estamos ajustando nosso comportamento ao que se espera de nós. Estamos, em suma, nos tornando produto, gado, para a automação. Quanto mais nosso comportamento estiver conforme o esperado por esses sistemas, mais fácil será sermos substituídos.
- Rebaixe seus dispositivos
– Em linha semelhante à regra anterior, passe a tratar seus dispositivos como o que são: ferramentas. Pense em seu celular como um canivete suíço: bastante útil e versátil. Mas na mesa de jantar em família, você precisa de um canivete suíço? No cinema? Em um passeio ou em uma mesa de bar com os amigos? Nós inadvertidamente elevamos nossos dispositivos ao estado de nossos melhores amigos, e essa é uma posição perigosíssima para ocuparem, pois nos afasta de nossa humanidade. As experiências que podemos viver fora das telinhas só podem — quando muito — serem simuladas no mundo cibernético, e essas experiências nos distinguem das máquinas e tornam mais difícil que sejamos substituídos.
- Deixe marcas pessoais
– A automação gera resultados precisos, mas esses resultados são frios e impessoais. O objetivo é deixarmos um pouco de nós, nossa marca pessoal naquilo que fazemos. O exemplo dado é o de Mitsuru Kawai, o funcionário da Toyota que criou a técnica do monozukuri, em que se especializou em identificar tarefas automatizadas na fábrica que poderiam ser melhoradas com o toque humano, e se tornou o primeiro executivo da empresa a subir a partir do chão de fábrica e um dos únicos não ter nível superior completo. O toque pessoal, único, fruto do olhar e embasado na competência, nos diferencia das máquinas.
- Não se torne um “Endpoint”
– Simplificando, em programação, um “endpoint” é uma rotina em um programa responsável por se comunicar com outro programa. É uma rotina que consegue falar a mesma língua do outro programa, recebe seus dados e os passa para frente, para serem processados. Se nosso trabalho consiste em receber dados de um sistema qualquer, dar uma “guaribada” nesses dados, isto é, organizá-los de alguma forma, e passá-los para frente, estamos agindo como “endpoints”, e estamos no caminho para a obsolescência. O exemplo dado foi o do software “Duplex”, do Google, uma inteligência artificial que consegue — com voz e trejeitos humanos — ligar para um salão e marcar um horário para cortar o cabelo. O atendente humano do outro lado da linha não sabia que estava falando com uma IA. E pior: recebeu os dados e marcou o horário. Esse atendente está no caminho da obsolescência.
- Trate a IA como um exército de macacos
– Inteligência Artificial é uma ferramenta fabulosa, que auxilia — e muito — a realização de tarefas, especialmente aquelas tarefas repetitivas que demandam muito tempo de uma pessoa e que precisam ser feitas com velocidade. Mas é preciso tratar a IA como se fosse um exército de macacos. Se você tivesse, digamos 100 macacos treinados, conseguiria dar várias tarefas a eles e essas tarefas seriam realizadas a contento. Mas você nunca, jamais, em hipótese alguma, atribuiria as tarefas, fecharia a porta do galpão, e tiraria férias no nordeste. Não, você ficaria em cima, avaliando o serviço dos macacos em marcação cerrada. Com IA ‘a mesma coisa: no momento em que viramos as costas, problemas graves acontecem. De sistemas de produção de camisetas que geram frases singelas como: “Mantenha a calma e estupre um monte” ou sistemas de reconhecimento de face que não reconhecem afrodescendentes, os problemas surgem com velocidade ímpar. Supervisionar IAs é algo que outras IAs não conseguem fazer.
- Crie grandes redes de proteção e pequenas teias de proteção
– O exemplo aqui é o do fim da empresa canadense RIM (Research In Motion), que “dominava o mundo” com o smartphone Blackberry. Com o surgimento do iPhone, da Apple, em 2007, a empresa entrou em declínio, deixando na mão a vasta maioria de seus mais de 20 mil empregados. E no entanto, a cidade de Waterloo, no estado de Ontario, sobrevivei à queda da RIM, e nos dá um exemplo de como proteger o ser humano da ascensão das máquinas: uma enorme teia de apoio social foi provida pelo governo da província e pelo governo federal canadense, com planos de saúde gratuitos para todos (uma realidade tanto no Canadá quanto no Brasil, ainda que não dê para comparar a qualidade), programas de treinamento e capacitação, apoio comunitário, e por aí vai. O resultado é que depois do “baque”, as pessoas se reergueram, se recolocaram, e a cidade não virou “cidade fantasma”.
- Capacite-se em Ciência Humanas voltadas para a era das máquinas
– Coisas que uma máquina não consegue fazer que nós, seres humanos, conseguimos: ter empatia, se frustrar e se reerguer da frustração, entender o que é estresse e evitar os efeitos do estresse, avaliar o sentimento de um grupo de pessoas, e por aí vai. As competências socioemocionais são apresentadas pelo autor como fundamentais para que evitemos a obsolescência, pois a máquina pode fazer o meu trabalho, mas não consegue avaliar minha dor ou se condoer de minha situação.
- Arme os rebeldes
— A tecnologia vai desempenhar os papeis que dermos a ela, e vai fazer isso de forma mais barata e eficiente. Mas não vai necessariamente fazer isso da forma mais ética, mais justa ou mais adequada no que concerne as necessidades de nós, humanos. Nas sábias palavras do Dr. Ian Malcolm, o cientista doidão vivido por Jeff Goldblum em “Jurassic Park”: “Seus cientistas estavam tão preocupados em saber se podiam ou não que não pararam para pensar se deviam”. Alguém precisa ficar de olho nas novas tecnologias, pois a busca por lucro não é o melhor dos conselheiros no que concerne o bem-estar de todos. Armar os rebeldes é isso: manter os olhos bem abertos do lado de cá da automação, para que o lado de lá não nos engula.
As regras de Kevin Roose podem ser sintetizadas de forma simples: invista no que te torna humano, no que te diferencia das máquinas, e torne essas características fundamentais para o exercício de sua profissão. É isso que vai te salvar da obsolescência.
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