09 de junho de 2022 | Leitura: 6min
Em 1905 Albert Einstein teve seu Annus Mirabilis, ou seja, seu ano mais produtivo, publicando nada menos do que cinco artigos seminais — incluindo a Teoria da Relatividade Restrita —, com qualquer um deles merecendo o prêmio Nobel de Física. Einstein receberia o prêmio justamente por um desses artigos em 1921 (não, não foi o artigo sobre a Teoria da Relatividade Restrita), e seu ano miraculoso ainda é fonte de admiração no meio acadêmico até os dias de hoje, sem nunca ter sido igualado. O que isso tem a ver com o livro “After Steve Jobs”?
Ruy Flávio de Oliveira – Sócio da 3GEN
Despois de sua quase-morte em 1997 a Apple chamou de volta seu co-fundador, Steve Jobs, que assumiu a hercúlea tarefa de recuperar a empresa.
Entre 2000 e 2010 ele levaria a empresa ao seu Decennium Mirabilis, lançando produtos icônicos e revolucionários como o iPod, o iTunes, o MacBook, o iPhone e o iPad. Todos transformaram de alguma forma seu nicho de mercado, até mesmo o MacBook, que entrou atrasado (e como) no acirrado mercado dos laptops. Quando faleceu em 05 de outubro de 2011, Steve Jobs era o executivo mais famoso do planeta, e a Apple a marca mais valiosa do mercado, ainda que a empresa em si valesse apenas uma fração de gigantes do ramo, como a Microsoft.
Em que pese o livro “After Steve – How Apple became a trillio-dollar company and lost its soul” (“Depois de Steve – Como a Apple se tornou uma empresa de um trilhão de dólares e perdeu sua alma”, em tradução livre), do jornalista de tecnologia do New York Times, Tripp Mickle começar a contar sua história um pouco antes da volta de Jobs, ele passa pela década miraculosa da empresa para contar a história dos dois personagens centrais: o designer Jony Ive e o futuro CEO Tim Cook. É em torno desses dois profissionais que gira a história contada no livro, e a narrativa de Mickle é construída por meio da relação de ambos com os colegas, com a empresa, com seus estilos e um com o outro.
O personagem 1: Jony Ive
Fonte: BR ATSIT
Ive é apresentado como um designer que se espelhou no pai para desenvolver seu cuidado e perfeccionismo. Genial desde os tempos de colégio, venceu um prêmio de design ainda como estagiário e foi para a Califórnia no início da carreira, sendo contratado pela Apple. Com a volta de Jobs, os cortes na empresa quase bateram à porta de Ive. Jobs buscava um novo designer, mas foi aconselhado a manter o jovem Ive, com 25 anos à época. Ao ver a qualidade do trabalho e o esmero de Ive para com suas criações, Jobs decidiu mantê-lo, provavelmente a decisão mais importante de sua carreira.
Jobs e Ive formariam uma dupla que sem exagero pode ser comparada a Lennon e McCartney. O gênio visionário de Jobs era perfeitamente complementado pelo gênio criativo de Ive, e juntos os dois deram vida à nova linha de produtos da Apple, tirando-a do buraco e a colocando em um caminho sólido de crescimento e sucesso.
O personagem 2: Tim Cook
Fonte: sosyalmedya
Cook é apresentado como um inteligente e metódico workaholic, que saiu do Alabama para a IBM, onde se especializou em operações e logística, e foi contratado pela Apple em 1998. Acostumado a acordar às 4 da manhã e se jogar nos exercícios da academia, alimentando-se frugalmente e morando modestamente, o autor pinta um retrato de Tim Cook em que o executivo não demonstra nenhum interesse além do trabalho.
Ao longo da careira na Apple, reduziu os estoques — péssimos para os resultados de qualquer empresa — criou relacionamentos com fornecedores em que os prazos eram cada vez mais reduzidos, negociou contratos mais favoráveis, e assim foi subindo dentro da Apple.
Após a morte de Jobs, com o co-fundador da Apple pedindo para que Cook nunca se perguntasse o que ele faria, Cook decidiu não emular o amigo falecido, e decidiu seguir o caminho que conhecia.
As mudanças depois de Steve Jobs
A partir da morte de Jobs, a Apple começou um caminho diferente, que por um lado a levaria a se tornar a empresa mais valiosa do planeta, e por outro decretaria o fim de sua era mais criativa e revolucionária.
Sem Jobs, Ive seria o Paul McCartney sem John Lennon: criativo, mas sem uma visão que o levasse mais longe. Ele se entregou ao refinamento dos produtos já existentes — com ênfase no iPhone — e à criação do Apple Watch, sua contribuição mais proeminente depois da era Jobs.
O Apple Watch foi lançado como um item de alta moda, e como tal foi um fracasso de vendas. Apenas com a atuação de Tim Cook ele viria a se tornar um sucesso de vendas, sendo reinventado como um dispositivo de saúde.
Já no caso de Cook, ele não assumiu nenhuma função de design, nem mesmo dando palpites na área, e se concentrou em fazer a empresa crescer. Continuou refinando contratos e processos operacionais, e mudou toda a área de fabricação da empresa para a China, mercado que desenvolveu sozinho. Aliás, a China foi a grande responsável pelo salto de crescimento da Apple, o segundo maior mercado mundial, que a Apple tratou de explorar com Tim Cook abrindo o caminho.
Ao longo da careira na Apple, reduziu os estoques — péssimos para os resultados de qualquer empresa — criou relacionamentos com fornecedores em que os prazos eram cada vez mais reduzidos, negociou contratos mais favoráveis, e assim foi subindo dentro da Apple.
Após a morte de Jobs, com o co-fundador da Apple pedindo para que Cook nunca se perguntasse o que ele faria, Cook decidiu não emular o amigo falecido, e decidiu seguir o caminho que conhecia.
Caminhos divergentes
Cook e Ive seguiram caminhos cada vez mais divergentes na empresa. Durante o reinado de Jobs, a área de design era soberana, e os custos e prazos não eram um problema. Com Cook no comando, a influência dos executivos de operações se fez sentir: custos passaram a ser questionados e prazos passaram a ser exigidos. Jony Ive foi perdendo o gosto pela empresa, ausentando-se cada vez mais.
Cook, por sua vez, decidiu que a empresa não poderia mais depender de produtos revolucionários, e optou por criar serviços de renda recorrente, que cada vez mais se aproximam de destronar o iPhone do posto de carro chefe da Apple.
O fim do sonho
Em 2019 Ive deixou de vez a empresa, e em que pese a Apple hoje se aproximar do valor estupendo de 3 trilhões de dólares, o subtítulo do livro foi quem se concretizou: a empresa parece ter perdido sua alma. Não é mais o azarão do passado, ditando os rumos de vários setores das indústrias de tecnologia e entretenimento. E ainda assim, não é mais a powerhouse criativa de seu ápice em 2010, tendo se tornado apenas mais uma megacorporação interessada muito mais nos lucros que gera para seus acionistas do que na disrupção que levou a vários mercados.
O livro de Tripp Mickle conta essa história com maestria, explorando com sensibilidade as lutas internas de seus dois personagens principais. “After Steve Jobs” captura os estágios dessa transformação da empresa, e cria a imagem de uma Apple ao mesmo tempo bem-sucedida e triste, que era pulsante quando o lado direito do cérebro era dominante, mas que só se tornou um tremendo sucesso financeiro quando o lado esquerdo tomou o controle. A Apple é, no fim das contas, uma empresa, e isso é visto como positivo pelo mercado, já que seu objetivo é ganhar dinheiro para os acionistas. Mas muita gente ainda pensa na Apple como uma banda de rock, que mudou o mundo da música quando era pequena e atrevida, mas que ficou tediosa e complacente agora que seus membros são multimilionários.
Steve Jobs uma vez disse que preferia ser um pirata a entrar para a Marinha. Naquele tempo a Apple era uma pequena corveta pirata assolando gigantes da Marinha como no caso da IBM. Hoje a Apple está mais para o maior dos porta-aviões a singrar os mares. Muito bom para quem investe na empresa, claro, mas muito triste para aqueles (como eu) que sabem que só aqueles que usam tapa-olho transformam o mundo.
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